Programas que estimulam redução do uso do remédio avançam no Brasil, mas
pouca estrutura, visão lucrativa sobre medicamentos e falta de diretrizes para
hospitais ainda atrapalham.
Por Keila
Guimarães, BBC
No final de janeiro, a estudante macapaense
Adrielly Gadelha Montoril, de 23 anos, se preparava para um final de semana
tranquilo após sua rotina de hemodiálise. Três vezes por semana, ela era
submetida à transfusão de sangue por meio de uma fístula arteriovenosa -
ligação entre uma artéria e uma pequena veia feita em seu antebraço.
A doença renal crônica que a acometia estava sob
controle, e nada no horizonte indicava que ela precisaria de intervenções
médicas emergenciais. Mas uma dor insuportável em seu braço, iniciada numa
sexta-feira, deu o sinal de que algo poderia estar errado.
"Eu peguei uma bactéria na fístula - não
sabemos como. Fiquei em casa no final de semana chorando de dor, pedindo ajuda
para meu pai. Meu braço queimava. Fiquei três dias tomando antibiótico, e ela
só foi progredindo. Crescia. A gente pensava que ela estava morrendo. Eu tinha
febre, aquela agonia no meu braço. Mas a gente não sabia o que era aquela
bactéria", relembra.
Na segunda-feira seguinte, quando Adrielly chegou
ao hospital para uma nova sessão de hemodiálise, havia uma bolha negra em seu
braço. "Os médicos se assustaram. Tiraram foto porque nunca tinham visto
aquilo. Fui levada com urgência para a sala de cirurgia", relembra.
"Meus pais não queriam acreditar. A fístula é um canal para o coração. Foi
um milagre eu ter sobrevivido."
Adrielly foi vítima de uma infecção por uma versão
resistente da bactéria Staphylococcus aureus. Além de ter que se submeter a uma
cirurgia para limpeza da área, a estudante perdeu a chance de continuar com as
transfusões.
Diante disso, a estudante teve que entrar de
emergência na fila de transplante. Ela recebeu um novo órgão em abril. Após
idas e vindas, teve alta definitiva na última terça-feira, mais de seis meses
depois da infecção bacteriana.
Uma
causas da resistência bacteriana é o uso excessivo de antibióticos, inclusive
dentro do ambiente hospitalar. (Foto: Freestocks/Joanna M. Foto)
Assim como Adrielly, casos de pacientes infectados
por bactérias resistentes vêm crescendo no Brasil e já causam ao menos 23 mil
mortes por ano, estimam especialistas.
Uma das principais causas da resistência bacteriana
é o uso excessivo de antibióticos, inclusive dentro do ambiente hospitalar. Por
esse motivo, hospitais brasileiros vêm implantando um novo sistema para
controlar o consumo desses medicamentos e evitar abusos.
"Há uma dificuldade estrutural para enfrentar
a resistência antimicrobiana, mas hoje sabemos que é preciso implementar regras
básicas para diminuir o uso de antimicrobianos. O paciente chega com um
problema e o médico já prescreve o antibiótico," afirma Sylvia Lemos
Hinrichsen, médica infectologista e professora da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).
Desde o ano passado, Sylvia vem treinando hospitais
brasileiros a racionalizar o uso de antibióticos, após estudar programas de
gestão de uso desses medicamentos no Reino Unido.
Gestão racional
Chamadas de Antimicrobial Stewardship Program
(ASM), as iniciativas começaram nos anos 2000 e se tornaram comuns na Europa e
nos Estados Unidos com a preocupação crescente sobre superbactérias. No Brasil,
programas para controle do uso de antibióticos também não são novos, mas as
iniciativas ainda estão em fase inicial.
O objetivo é que os médicos usem antibióticos de
maneira mais precisa e evitem desperdícios. Quanto mais se usa um antibiótico
sem necessidade, maior o risco de se criar uma superbactéria.
De acordo com informações compiladas pelo Centros
de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos em 2014, cerca de
20% a 50% dos antibióticos prescritos em hospitais de cuidados intensivos
naquele país são ou desnecessários ou foram prescritos incorretamente.
No Brasil, as estatísticas não são melhores,
segundo os médicos.
"Costumávamos tratar pacientes antes mesmo da
cirurgia. A pessoa ia tirar um dente e começava com o antibiótico dias antes. E
isso traz riscos muito graves", explica a médica Maria Manuela Alves dos
Santos, superintendente do Consórcio Brasileiro de Acreditação, que certifica a
qualidade de hospitais em parceria com a Joint Commission International.
Desde julho, a JC incluiu gestão racional de
antibióticos como um dos requisitos para seu selo de qualidade. Para usar esses
medicamentos de maneira mais eficiente, os hospitais precisam mapear os
organismos infecciosos mais comuns em sua unidade e criar mecanismos para
identificar rapidamente as reais causas das infecções em pacientes.
"Da mesma forma que um hospital precisa de uma
equipe de limpeza, precisa de uma equipe de microbiologia para saber sua
realidade microbiológica. Porque é a partir disso que vou sugerir guias
terapêuticos para os meus médicos", diz Pedro Mathiasi, infectologista do
HCor, em São Paulo, que desde 2013 lidera um programa de gestão racional de uso
de antibióticos.
Demora
Quando um doente chega ao hospital, os médicos
muitas vezes não conseguem identificar prontamente a causa da infecção, mas
colocam o paciente sob antibióticos, para evitar que a doença se alastre,
enquanto colhem amostras para investigar o problema.
Essa investigação é feita pelo laboratório de
microbiologia, que determina quais bactérias, fungos ou vírus são a causa de
determinada doença. Em países desenvolvidos, esses testes saem em até duas
horas, mas, no Brasil, médicos relatam que resultados podem levar até sete dias
para ficar prontos.
"Se o laboratório de microbiologia dá retorno
rápido, o médico ajusta o tratamento. Isso traz resultados melhores para o
paciente e reduz o tempo dele no hospital", explica José Martins de
Alcântara Neto, farmacêutico do Hospital Universitário Walter Cantídio, de
Fortaleza, que em fevereiro desse ano também implantou um programa para
racionalizar o uso de antibióticos.
Porém, quanto mais esses testes demoram, maior o
risco de pacientes receberem antibióticos fortes demais, que atacam múltiplas
bactérias ao mesmo tempo. Chamados de amplo espectro, esses medicamentos são
efetivos, mas selecionam mais bactérias resistentes.
"Quando chega o resultado, vejo se posso
diminuir o espectro do antibiótico, se posso dar uma dose mais branda. Esse é o
pulo do gato. Porque às vezes você está dando um tiro de canhão na bactéria
quando um tiro de chumbinho resolveria", compara Mathiasi.
Desde 2014, o HCor diz ter reduzido em 60% o uso de
antifúngicos e de carbapenêmicos, uma classe de antibióticos de amplo espectro.
A queda foi registrada na UTI de cardiopediatria, que faz cirurgias de alta
complexidade em crianças.
A instituição também reduziu à metade casos de
diarréia causadas pela bactéria Clostridium difficile, que é associada ao uso
de antibióticos. "Conseguimos praticamente tudo: redução dos índices de
resistência, de custo com antibióticos e de efeito adverso para os
pacientes", enumera Mathiasi.
A passos lentos
O HCor faz parte de uma rede de 220 hospitais
nacionais que têm sido treinados dentro de um programa internacional da empresa
farmacêutica MSD. A companhia diz que já levou a iniciativa a 26 países.
Oferecido gratuitamente, o programa faz parte dos
esforços da companhia para que seus antibióticos durem mais. Com a capacidade
de bactérias de se adaptar rapidamente aos medicamentos desenvolvidos para
eliminá-las, remédios às vezes podem se tornar inúteis em poucos anos, gerando
perdas às farmacêuticas.
A ideia é elogiada por especialistas, mas ainda
está longe de representar a realidade brasileira.
"Não estamos onde deveríamos estar,"
resume Ana Gales, coordenadora do Comitê de Resistência Antimicrobiana da
Sociedade Brasileira de Infectologia. "Um programa como esse deveria estar
em todos os hospitais brasileiros. Mas, como país subdesenvolvido, temos
instituições onde isso está completamente implantado, mas outras que ainda nem
começaram", diz.
Parte dos entraves é estrutural. O Brasil tem cerca
de 6,2 mil hospitais, e nem todos possuem laboratórios de microbiologia, o que
dificulta tratamentos precisos.
Um levantamento preliminar da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2015 indicou que o país tinha 660 laboratórios
do gênero cadastrados em seu sistema - praticamente um para cada dez hospitais.
A agência diz que abriu nova chamada para cadastrar essas instituições.
Também não há ainda um guia nacional para as
instituições hospitalares. Aqueles que adotaram tais iniciativas recorreram a
publicações internacionais, como a da Sociedade Americana de Doenças
Infecciosas (IDSA, na sigla em inglês).
Em nota, a Anvisa informou que trabalha desde
novembro em uma diretriz nacional para hospitais e que irá publicá-la até o
final do ano.
"Um modelo nacional vai sem dúvida estimular
os hospitais a adotar o modelo", avalia Alcântara Neto, do Hospital Walter
Cantídio. "Você imagina, vários hospitais do Ceará, trabalhando com uma
mesma metodologia. Tem chance de dar resultados melhores."
Lucro
Outro entrave é comercial. Ainda perdura em muitos
hospitais, principalmente privados, a visão de que usar antibióticos é uma
prática lucrativa. As instituições, ao medicar pacientes, cobram dos convênios
o uso desse medicamento, num modelo de revenda, no qual garantem margem de
lucro.
Mas especialistas dizem que a prática está cada vez
mais em declínio. "A gente já identifica que esse pagamento por serviço de
antibiótico está morrendo. Poucos hospitais ainda sobrevivem disso", diz
Mathiasi, do HCor.
Sylvia Hinrichsen, da UFPE, acredita que a
mentalidade econômica do uso de antibióticos e a cultura de usar o medicamento
em excesso precisam mudar por inteiro - e que o paciente também faz parte dessa
mudança.
"Essa cultura vai precisar mudar porque a
própria população vai começar a entender que não é para tomar antibiótico por
21 dias, não é para tomar quatro tipos de antibióticos numa tacada só",
diz.
"Vai ser igual a quando começamos a usar cinto
de segurança - vamos entender que o risco de não utilizar corretamente pode ser
fatal."
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